Federico Mayor Zaragoza*
“É tempo de deixar de ser o que éramos para nos transformar no que somos capazes de ser”, Marianne Williamson
“Tenho a sensação de estar vivendo o final de muitas épocas”, escreveu Miguel Delibes, que sempre mirava o futuro. A imensa maioria dos dirigentes vivem ancorados no passado sem se dar conta de que, por fim, depois de séculos e séculos de poder absoluto masculino, em que a imensa maioria dos seres humanos eram anônimos, invisíveis, obedientes, tementes, agora se avizinham, a passos largos, profundas transformações que nos permitirão progressivamente “ser” todas as pessoas, passando de espectadores passíveis a atores.
Será possível colocar em prática a lúcida expressão de “Nós, os povos...” com a qual se inicia a Carta das Nações Unidas, porque as novas tecnologias da informação e comunicação permitiram a um considerável número de seres humanos “fazerem-se visíveis”, participarem, exporem seus pontos de vista, seus protestos e suas propostas. Com isso, adquiriram uma cidadania mundial e uma consciência global que lhes permite comparar, apreciar o que têm e conhecer as precariedades alheias.
Mas, para a mudança de época, é sobretudo imprescindível contar com a participação feminina, com seu inerente respeito à vida e utilizar sem propensões a força e o domínio para impor seus critérios – de tal modo que a equidade seja um dos principais pilares do novo paradigma.
O mundo deve hoje conhecer e reconhecer o insólito poder cidadão. A sociedade civil, submissa desde a origem dos tempos, passará agora a ser protagonista, em poucos anos, de múltiplas mudanças, apesar da inércia, apesar das travas de toda ordem que serão colocadas por aqueles que continuam presos ao ontem e não querem aceitar as responsabilidades que lhes são incumbidas para superar a crise sistêmica que afeta a humanidade e que tantos rompimentos vem produzindo – particularmente, no tecido social mais vulnerável.
Se não há evolução, haverá revolução, agora sem derramamento de sangue porque se dará sobretudo no ciberespaço. O que impuseram suas ambições hegemônicas e substituíram os valores éticos pelas leis do mercado e as Nações Unidas por grupos plutocráticos (G6, G7, G8… G20) são culpados não apenas do naufrágio econômico, mas de ter levado, no começo do século e do milênio, a desigualdades sociais inadmissíveis e a uma total ausência de liderança institucional e pessoal.
De fato (não me canso de repetir porque é um ensinamento para a ação cotidiana), 60 mil pessoas, em sua maioria crianças de um a cinco anos, morrem de fome todos os dias, ao passo que são investidos 4 bilhões de dólares em armas e gastos militares.
Agora vêm ao caso os preciosos versos de José Ángel Valente: “Eu lhes escrevo de um naufrágio./ Do que temos destruído / diante de tudo, em nós... / … mas lhes escrevo também da vida / … de um mundo vindouro”.
Para isso, seria imprescindível que se abrissem os horizontes de tantos moradores da Terra que estão confinados. Para que eles pudessem escapar. Para que fossem iguais em dignidade... Tudo isso está a caminho. O mundo “vindouro” se aproxima a passos largos. As novas tecnologias da informação e da comunicação são peças essenciais dessa repentina “epifania” humana, desse deixar de ser imperceptíveis e silenciosos.
“O compromisso supremo de cada geração”, dizia o presidente Nelson Mandela, “é levar em conta a geração seguinte”. A responsabilidade intergeracional deve vir para o primeiro plano, em um momento no qual, obcecados com o presente de alguns poucos, nos damos conta de que nos esquecemos do mais importante: o bem-estar de nossos filhos e descendentes, a habitabilidade da Terra, a qualidade de um contexto ecológico no qual todos os seres humanos, já identificáveis, visíveis e capazes de se expressar, possam exercer plenamente suas faculdades distintivas.
Estamos no advento do antropoceno – as atividades humanas incidem no meio ambiente – e a força da razão deve se impor de uma vez sobre a razão da força. Mas os grandes consórcios mundiais continuam se baseando a “marcha” da humanidade nos combustíveis fósseis.
É urgente, como em todos os processos potencialmente irreversíveis, diminuir, mediante um grande pacto supervisionado pelas Nações Unidas, por meio de um Conselho de Segurança do Meio ambiente, as gravíssimas alterações que já estão sendo produzidas neste momento.
Em poucos anos, deve-se favorecer a recaptura do anidrido carbônico pelo fitoplâncton dos mares, achar as ligas que permitam o transporte de grandes quantidades de eletricidade, promover as energias renováveis (fotovoltaica, termossolar, eólica... painéis nas casas e nos edifícios, carros híbridos e elétricos...), investindo de uma vez por todas em segurança vital uma parte – bastariam 30% ou 40% – do que atualmente representa a segurança militar, que abrange apenas 20% da humanidade.
No lugar de tantos aviões típicos de guerras passadas, é urgente dispor de aviões e artifícios para lutar contra os incêndios, as inundações, as catástrofes naturais e de toda índole mediante estratégias cientificamente projetadas.
O poder cidadão deverá situar entre suas primeiras reivindicações o desarme nuclear imediato. Trata-se de outro grande pacto global promovido por um colossal clamor dos cidadãos do mundo.
Nos últimos anos, proliferaram-se os diagnósticos. Agora faltam os tratamentos a tempo para favorecer uma autêntica remodelação em escala mundial, antes que seja tarde demais. É preciso um novo paradigma – cuja proposta é liderada pelos professores Ivo Slaus e Garry Jacobs da Academia Mundial de Arte e Ciência – que eu tenho certeza de que não tardará a se adaptar graças ao “grito das pessoas”, de “Nós, os povos”, atuando com firmeza.
Com as Nações Unidas refundadas, dispondo de uma Assembleia Geral integrada igualmente por Estados e por representantes da sociedade civil, além do Conselho de Segurança atual e do acima mencionado, um Conselho de Segurança Socioeconômico, será possível a transição da atual economia de especulação, deslocamento produtivo e guerra para uma economia de desenvolvimento global sustentável e humano possa se tornar realidade em muito poucos anos. Obcecados pelo curto prazo, acreditam que, em um mundo finito, se possa crescer indefinidamente sem substituir o que se consome, sem atender cuidadosamente a conservação da Terra, sem imaginar novos caminhos para o amanhã. O que é infinita é a criatividade que distingue os seres humanos. É essa a nossa esperança para resolver tanto as crises econômicas como as sociais que delas derivam.
A Carta da Terra estabelece em seu preâmbulo: “Estamos em um momento crítico da história da Terra, no qual a humanidade deve escolher seu futuro”.
“Nenhum desafio está além da capacidade criadora da espécie humana”, proclamou o presidente John F. Kennedy em 1963. É imprescindível tornar possível aquele desenvolvimento integral, endógeno, sustentável e humano que se defendeu então como a melhor fórmula para a governança mundial, de tal modo que os seres humanos, e não apenas uns poucos, possam se beneficiar do progresso científico.
Apenas em um contexto de democracia genuína será possível passar de uma cultura de imposição, violência, domínio e guerra para uma cultura de encontro, conversação, conciliação, aliança e paz.
O imenso poder das redes sociais será a pedra angular da grande transição de súbitos para cidadãos plenos, da força para a palavra. A revolução digital será, por seu âmbito e profundidade, a mais importante desde a origem dos tempos. Em termos antropológicos, sociais e econômicos, o mundo já não será como antes. A maior longevidade contribuirá para dispor de conhecimentos e experiências que permitam tornar realidade o sonho universal da igual dignidade humana. O bairro próspero da aldeia global se ampliará de tal modo, que as assimetrias e desigualdades que hoje ofuscam o horizonte serão reduzidas até desaparecerem.
Em resumo, nós nos encontramos em um momento de profundas transformações sociais, que ocorrem com uma rapidez sem precedentes. Situações sem precedentes que, como indicou Amin Maalouf, requerem soluções sem precedentes. E, quase inadvertidamente, nos encontramos diante de um novo ser humano capaz de intervir, de expor suas opiniões, de assumir plenamente as funções que lhes são correspondidas. O tempo do silêncio, da obediência, do anonimato... acabou.
Uma nova era se avizinha. “E que seja ouvida / a voz de todos, solenemente e clara / ...que tudo está por fazer e tudo é possível / ...mas, quem senão todos?”, escreveu de maneira lúcida Miquel Martí i Pol.
A voz de todos. Por fim, falar, falar todos. A palavra, a nova era, o novo começo.
*Presidente da Comissão Internacional contra a Pena de Morte, ex-diretor geral da UNESCO, presidente da Fundação Cultura de Paz.
Data: 23.05.2014
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