sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Drogas: repressão mundial pode cair até 2016

Manifestantes uruguaios reivindicam legalização da maconha. Pressões sociais poderão influenciar ONU?

Documentos vazados e declarações públicas revelam: às vésperas de uma revisão das políticas proibicionistas, cada vez mais países opõem-se a elas

Por Gabriela Leite

A legalização da maconha no Uruguai pode ser apenas o primeiro rombo, numa barragem ameaçada por águas revoltas. Um documento restrito da ONU, vazado em dezembro pelo jornal britânico The Guardian escancarou: os Estados Unidos terão grande dificuldade para manter, nos dois próximos anos, o consenso global que lideram, em favor da proibição do uso de certas plantas psicoativas e seus derivados.

Os documento revelado pelo The Guardian tem enorme relevância e ajuda a entender a dinâmica das legislações repressoras. A cada década, a Assembleia Geral da ONU revisa, em sessão especial, as determinações de sua Convenção Única Sobre Drogas Narcóticas. Celebrada em 1961, este evento tornou-se a base das legislações nacionais antidrogas. Ao longo dos últimos 50 anos, suas orientações foram mantidas, sem que se abrisse nenhum debate relevante. O país que mais pesou para esta postura imobilista foram os EUA — envolvidos oficialmente, desde 1971, numa “guerra contra as drogas”. Às vésperas da próxima revisão, marcada para 2016, o consenso está ruindo.

O jornal britânico obteve o primeiro rascunho do texto preliminar para a reunião da Assembleia Geral. Preparado pela Comissão sobre Drogas Narcóticas da ONU, ele revela algo muito curioso: diversas nações estão questionando o proibicionismo e exigindo uma mudança de postura.

As divergências são de natureza distinta e a América do Sul tem, também neste tema, protagonismo. As ressalvas do Equador pedem que a política de repressão seja substituída por “abordagens mais eficiente e efetivas”. A Venezuela argumenta que as posturas atuais não levam em conta “as dinâmicas do mercado criminal da droga”.

Mas também alguns governos europeus, aponta o The Guardian, estão descontentes. A Suiça, por exemplo, mostrou preocupação com a criminalização dos usuários, fato que os afasta dos serviços de saúde pública e procurar ambientes informais e sem segurança. Alertou que a transmissão do HIV por drogas injetáveis está ajudando a espalhar a epidemia da AIDS em muitos países. Já a Noruega insistiu para que se afirmem questões relacionadas à descriminalização, além de uma reavaliação crítica da chamada “guerra às drogas”. Os própria União Europeia, enquanto bloco, reivindicou que o tratamento à dependência de drogas e o acesso a cuidados médicos possa surgir como alternativa à prisão do usuário.

As divergências apontadas pelo rascunho dão dimensão oficial a um movimento anterior. Nos últimos meses, governantes de diversos países manifestaram, em declarações públicas, dúvidas quanto ao proibicionismo. Em março do ano passado, o secretário da presidência do Uruguai fez discurso a favor da regulamentação do uso e da venda da maconha — projeto de lei que já tramitava em seu país, e foi aprovado recentemente. Meses depois, o presidente da Guatemala, Otto Pérez Molina manifestou opinião semelhante diante da própria Assembleia Geral da ONU. Apontou o fracasso do proibicionismo e advertiu: “não podemos seguir fazendo o mesmo e esperar resultados diferentes”. Em junho, na reunião de cúpula da Organização dos Estados Americanos (OEA), Colômbia, Guatemala e México haviam liderado o bloqueio a uma proposta de Washington, que propunha declaração de apoio à convenção da ONU.

Meio século depois de adotado o proibicionismo, seu fracasso fica óbvio também em números: segundo estimativas da própria ONU, o tráfico de drogas cresceu a mais de 350 milhões de dólares por ano, e acredita-se que até 2050 o número de usuários aumente 25%. Todo o dinheiro gasto por governos de países de todo o mundo, para proibir e punir pessoas relacionadas ao tráfico e consumo de drogas parece estar indo por água abaixo. Nascem, então, novas propostas para lidar com o assunto — principalmente tratando as drogas como questão de saúde pública, mais que de segurança. Além do Uruguai, primeiro país a adotar uma política abertamente alternativa à repressão, mudanças parciais já são adotadas por Holanda, Portugal, e alguns estados norte-americanos.

A ONU saberá acompanhar estas mudanças? As sociedades terão força para pressioná-la? Os dois próximos anos — até a próxima Assembleia Geral de revisão — serão decisivos e repletos de fatos novos. Já em março de 2014, a Comissão sobre Drogas Narcóticas das Nações Unidas irá realizar, em Viena, seu encontro anual. Nele, será examinado oficialmente o texto que o The Guardian vazou.

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