segunda-feira, 11 de março de 2013

Medicamentos na Roma Antiga - parte II

Texto gentilmente cedido pelo Neto Geraldes (historiador e médico) do blog: Xarope de letrinhas (http://netogeraldes.blogspot.com.br/)
Data: 08.03.2013

Materia medica Dioscorides

Na obra História Natural de Caio Plinio Segundo (Plínio, o Velho), encontra-se uma visão geral do que eram as tradições romanas no campo da medicina e podem ser identificados indícios da resistência que os romanos ofereciam à penetração dos conhecimentos da medicina grega. A História Natural é uma obra enciclopédica, em 37 volumes, provavelmente publicada entre os anos 77 e 79 d.C. compilando vários aspectos do conhecimento humano. Cinco desses 37 livros, os de número 28 a 32 tratam da medicina, da utilização de plantas para o tratamento de diversos males, nos quais Plínio defende os aspectos tradicionais da medicina romana e condena procedimentos e tratamentos que viu ou que aprendeu com estrangeiros. (1)

O rabanete era considerado bom para tosse, para expelir cálculos da bexiga e também era um bom remédio para venenos. Aqui, Plínio faz uma interessante observação, certamente não testada por ele:

“Rabanetes, também, são úteis como um remédio para venenos, e são utilizadas para neutralizar os efeitos da picada da cerasta* e do escorpião: com efeito, depois de ter esfregado as mãos com rabanetes ou com sementes de rabanete, podemos pegar esses répteis com segurança.” (2)

A cebola era indicada para tratamento de doenças dos olhos e o paciente devia cheirar a cebola até que lágrimas caíssem dos olhos. O efeito seria melhor se o suco da cebola fosse esfregado nos olhos. Misturado ao leite de mulher combatia afecções nos ouvidos. (2)

No processo de romanização da medicina grega, merece destaque o trabalho de Aulus Cornelius Celsus, que escreveu em latim elegante e claro a obra De Medicina, um tratado em oito livros, nos quais era compilado e sistematizado o conhecimento médico disponível até então. Celso dizia que os tratamentos médicos podiam ser feitos de três maneiras: por meio de drogas e medicamentos, pela dieta e pela cirurgia. (3) Ele retratava um novo estilo de pensamento, mais “científico”, alicerçado no conhecimento grego em contraposição ao estilo de pensamento mais voltado para a tradição e negação dos estrangeiros, que se vê na obra de Catão e mesmo Plínio.

No De Medicina, a camomila que ele chamava de Pyretrum, herba salivaris, era mostrada como tendo a capacidade de curar feridas infectadas (4) O heléboro negro era empregado no tratamento das doenças causadas pelo excesso do humor atrabílis**, e o heléboro branco para diminuir os edemas que ocorriam nas escrófulas. (5) Aqui, o termo escrófula provavelmente era empregado para designar a inflamação dos gânglios linfáticos. Tanto o heléboro negro como o branco, são ainda hoje usados como medicamentos homeopáticos. O heléboro branco é muito tóxico e era utilizado também como veneno, na ponta de flechas pelos romanos.
Aulus Cornelius Celsus

Na introdução do livro V do De Medicina, que trata de medicamentos, Celso admite a influência de outros autores mais antigos, como Erasístroto, Herófilo, Apolonio, Asclepíades e lista uma série de afecções e os medicamentos para o seu tratamento.

Para o que ele chamava de dor aguda do baço, um tratamento era feito com um medicamento preparado com a casca da castanha, natrão* que eram triturados, misturados com vinagre e farinha de cevada e espalhados sobre uma gaze umedecida com água fria e colocados sobre a região, mas Celso alertava: “não deve ser mantido por mais de 6 horas, para que não venha a consumir o baço; é melhor aplicá-lo duas ou três vezes.” Se a dor fosse no fígado a recomendação era a aplicação de emoliente com consistência de pomada composta por vários ingredientes como gotas de bálsamo, mirra, canela, açafrão, resina de terebintina e vinho suave. Quando as dores fossem nos flancos, Celso recomendava a composição do Apollophanes que consistia em resina de terebentina, incenso,bdelio, amoníaco, lírio e sebo de rim de bode ou bezerro. Esse medicamento ele dizia, “alivia dor de todos os tipos, amolece as indurações e aquece moderadamente. (6)

Entre as fontes que retratam a história da farmacologia e do tratamento medicamentoso na Roma antiga, talvez a mais importante seja a Materia Medica de Dioscorides. Pedanius Dioscorides nasceu em Anazarbo na atual Turquia, por volta do ano 40 d.C. Viveu em Roma no tempo do imperador Nero. Na Materia Medica são descritas aplicações medicinais de cerca de 600 plantas, das quais algumas ainda fazem parte de farmacopeias  Dos cinco volumes que compunham o obra, dois deles eram dedicados às plantas e raízes. A Materia medica foi a base do conhecimento farmacológico ensinado nas escolas de medicina do ocidente até o século XVII. Dioscorides descreveu também 35 medicamentos obtidos de produtos animais e 90 de minerais. (7) Uma das plantas que Dioscorides relacionou foi a camomila, que ele recomendava a utilização como bebida para distúrbios do fígado, intestinos, bexiga e doenças das mulheres. (8)

O laserpicium era uma das ervas mais utilizadas, como revigorante, para combater doenças circulatórias, asma e indigestões. Era utilizado também para cicatrizar feridas e facilitar a drenagem de abscessos. Servia até como antídoto para picadas de cobras. Para a calvície ele era empregado em uma infusão que continha também vinho, açafrão, pimenta e fezes de rato. (9)

Colocar sal sob a língua, pelas manhã, em jejum era bom para os dentes. Outra boa providência era lavar a boca com sangue de tartaruga, pelo menos três vezes num ano, e se mesmo assim ocorresse a dor de dente, para combatê-la utilizava-se uma mistura de abóbora com absinto e sal. (9)

No seu famoso De Medicina, Celso considerava a dor de dente como um dos piores tormentos e dizia que nas dores mais severas um clister poderia ser útil, com um cataplasma quente sobre as bochechas. Aqui ele segue os princípios do estilo de pensamento dos hipocráticos, pois a utilização do clister visava à eliminação de humores nocivos. Recomendava também alguns medicamentos, entre eles a raiz da potentilha que devia ser fervida em vinho diluído, ou então a raiz de hyoscyamus fervida em vinagre ou vinho com um pouco de sal. Ainda podia ser usada cabeça de papoula e raiz de mandrágora. Esses medicamentos deveriam ser bochechados, cuidando para que não fossem engolidos. Raspas de chifre de veado fervidas em vinagre, junto com uma erva chamada erva-dos-gatos. Para os dentes cariados Celso dizia que não havia pressa em extraí-los, diversas ervas podiam ser empregadas no seu tratamento como suco de papoula com pimenta, camomila, ou então enxofre, betumen e mostarda. Se a dor persistisse, o tratamento seria a remoção do dente afetado. (10)

Alguns aspectos da história do uso médico do ópio, produto da papoula mostram bem o conhecimento empírico que os romanos tinham dos seus efeitos no organismo. Plínio, o Velho, já apontava os efeitos hipnóticos da semente da papoula e até o risco de morte com a ingesta de quantidades excessivas. Foi Plínio provavelmente o primeiro a utilizar a denominação opium para designar o suco da papoula. Disse ele: (o suco da papoula) não apenas possui determinadas qualidades soporíficas, mas, se tomado em quantidades excessivas produz sono até à morte: o nome que se lhe dá é opium. Plínio recomendava seu uso misturado ao leite humano para o tratamento de dores reumáticas e, misturado com vinagre podia ser usado para tratar erisipelas. (11)Celso conhecia os efeitos analgésicos do ópio e apresenta no De Medicina várias formulações com o emprego da papoula para combater a dor. Ele não usava o termo opium introduzido por Plinio, preferia a denominação de papaveris lacrimae (lágrima da papoula) e a indicava como sonífero, como digestivo, como analgésico, para aliviar dores de ouvido e cólicas, para aliviar a tosse além de outras indicações. (11)

Os romanos, sempre em guerra, frequentemente construíam uma espécie de hospital para o atendimento aos legionários, que chamavam valetudinarium. Escavações arqueológicas em um desse hospitais em Neuss na Alemanha, revelaram importantes descobertas relacionadas às plantas ali utilizadas. A datação mostrou que o sítio arqueológico era do século I d.C. e foram encontrados várias espécies de plantas. Uma delas, que conhecemos hoje como fel-da-terra, era utilizada para tratar ferimentos, doenças oculares e até como antídoto para picada de cobra. Encontram-se referências à essa erva nos trabalhos de Plínio, Celso, Dioscorides, já citados. Outra planta encontrada foi o meimendro, que Celso indicava em várias apresentações, com várias finalidades: após decocção para induzir sono, as sementes amassadas e misturadas com gordura aplicadas localmente para aliviar a dor, raspas do caule para reumatismo, o suco para dor de ouvido e a raiz para dor de dente. Sabemos hoje que dessa planta a Hyoscyamus niger se obtém a hioscina e a hiosciamina, ainda hoje empregados em medicamentos antiespasmódicos industrializados. A erva de São João também era ali encontrada e utilizada para expelir cálculos da bexiga. Há relatos ainda da presença nesses locais da planta que hoje é conhecida como Plantago lanceolata, uma planta européia, que Celso recomendava para tratamento de hemorragias, diarreias e elefantíase. Resquícios de outros vegetais como ervilha, figo e lentilha foram encontrados no mesmo sítio arqueológico, mas provavelmente não eram usados com fins medicinais, mas provavelmente como parte da dieta da tropa ou da convalescença dos doentes. (4)

É difícil estabelecer o modo pelo qual, e desde quando, na Antiga Roma, a utilização de ervas e plantas no tratamento de doenças passou a fazer parte do cotidiano e como os conhecimentos foram incorporados. É fato, porém, que esses conhecimentos permaneceram vigentes por longo tempo, atravessando toda a Idade Média e Renascimento, sendo ensinados nas Faculdades de Medicina, fazendo parte dos coletivos de pensamento das comunidades médicas até o século XIX. O livro de Celso, De Medicina, foi o primeiro livro médico a ser impresso depois da invenção da imprensa por Gutenberg (em 1478 na cidade de Florença). (12) O Materia Medica de Dioscorides também foi impresso no final do século XV e foi a principal referência em drogas medicinais nas escolas de medicina até o século XIX. Muitas das observações dessa protofarmacologia ainda são aproveitadas pela fitoterapia e homeopatia atuais e vários medicamentos modernos industrializados são obtidos de plantas, cujos efeitos já foram observados há mais de 2000 anos.

Bibliografia consultada

1. Vieira, Ana Thereza B. Origens da medicina romana na história natural de Plínio, o Velho. Archai. 2009, Vol. 3, pp. 31-43.

2. Plinio, Caio Segundo. The Natural History of Pliny. [trad.] John Bostok e H. T. Ridley. London : Stanford University Libraries, 1856. Vol. IV.

3. Entralgo, P.Laín. Historia de La Medicina. Barcelona : Masson, 2006.

4. Dawies, R.W. Some Roman Medicine. Medical History. 14, 1970, Vol. 1, pp. 101–106.

5. Sousa, Maria Adriana S. M. A arte médica em Roma antiga nos De Medicina de Celso. Ágora. Estudos Clássicos em Debate. 7, 2005, pp. 81-104.

6. Celsus, Aulus Cornelius. De Medicina. http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Celsus. [Online] [Citado em: 15 de 08 de 2010.]

7. Ars Curandi. http://pt.ars-curandi.wikia.com/wiki/Diosc%C3%B3rides. [Online] [Citado em: 30 de 07 de 2010.]

8. Scarborough, John. Drugs and medicines in the Roman World. Expedition. 1996, Vol. 38, 2.

9. Vieria, Ana Thereza B. O médico e a medicina em Roma. http://www.letras.ufrj.br/pgclassicas/medicinaana.pdf. [Online] [Citado em: 30 de 07 de 2010.]

10. Prioreschi, Plinio. Roman Medicine. Omaha : Horatio Press, 1996.

11. Trancas, Bruno et al. O uso do ópio na sociedade romana e a dependência do Princeps Marco Aurélio. Acta Medica Portuguesa. 21, 2008, Vol. 6, pp. 581-590.

12. Langslow, D.R. Medical Latin in the Roman Empire. Oxford : Oxford University Press, 2000. pp. 41-75.

* Cerasta é uma serpente venenosa encontrada no Norte da África.
** A teoria dos humores, base da fisiopatologia hipocrática, explica que as doenças eram causadas por distúrbios nos 4 humores que compunham o corpo humano: sangue, fleugma, bílis amarela e bilis negra (ou atrabilis).

* Natrão é um mineral composto por carbonato de sódio hidratado, Era usado no antigo Egito durante o processo de embalsamamento das múmias. (Wikipedia)

Posted by Neto Geraldes
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