Texto gentilmente cedido pelo Neto Geraldes (historiador e médico) do blog: Xarope de letrinhas (http://netogeraldes.blogspot.com.br/)
Data: 06.03.2013
Resolvi fazer este post motivado por uma nota que as amigas Loudes Capeletto e Adelia Woellner me enviaram. Em 1974 foram descobertos perto da praia de Pozzino, na Toscana, nos destroços de uma embarcação naufragada no século II a.C., várias caixas de latão, um pilão, frascos de madeira e outros utensílios que indicavam uso em medicina. Numa das latinhas havia 6 comprimidos redondos de cerca de 4 cm de diâmetro por um de espessura.
Após longo tempo de estudos, a composição desses comprimidos foi revelada na edição de 07/01/2013 da revista Proceedings of the National Academy of Sciences, no artigo Ingredients of a 2,000-y-old medicine revealed by chemical, mineralogical, and botanical investigations, de autoria dos cientistas italianos: Gianna Giachi, Pasquino Pallecchi, Antonella Romualdi, Erika Ribechini, Jeanette J. Luceiko, Maria Perla Colombini e Marta M. Lippi. Os cientistas concluíram que os comprimidos eram de fato medicamentos, provavelmente para uso em afecções oculares e que continham zinco, carvão, amido, cera de abelha, resina de pinheiro, gorduras vegetais e animais, fibras de linho, pólen entre outros. (1)
A composição do medicamentum confirma referências encontradas nas obras de expoentes da medicina romana da época, como Plínio, Catão, Dioscorides e Celso. Joffre Rezende, professor emérito da Universidade de Goiânia nos ensina que o termo medicamento é derivado do latim medicamentum, vocábulo que tem o mesmo tema de médico, medicina, medicar, etc., e que deriva verbo medeor, que significa cuidar de, proteger, tratar. Medicamentum, em latim, tinha também o sentido de beberagem mágica, bruxaria, feitiço. Remédio é derivado de remedium, aquilo que cura. "Remédio tem um sentido mais amplo que medicamento. O remédio compreende tudo que é empregado para a cura de uma doença. (...) O exercício pode ser um remédio, porém nunca é um medicamento. Remédio é termo mais extensivo que medicamento, é o gênero de que este é a espécie" (2)
A utilização de plantas para o tratamento de doenças é tão antiga quanto a História da Medicina. Na Suméria de 5000 atrás já existem evidências do conhecimento da papoula e seus efeitos. Num ideograma sumério ela é chamada de a “planta da alegria”. No Papiro de Ebers encontram-se também referências ao uso do ópio para sedação de crianças (3) e evidências da aplicação de óleo de rícino para tratar doenças de pele. Os antigos egípcios já conheciam também as propriedades laxativas desse óleo que é extraído da planta conhecida como mamona. (4) Quase três mil anos antes de Cristo, na China, o imperador Shen Nung escreveu uma obra chamada Pen T´sao Ching, o Herbário, na qual descreveu 365 ervas com ação terapêutica. Ali já se conhecia o ópio, extraído da papoula, o ruibarbo, usado como laxante. Para tratar asma, Shen Nung usava a ma-huang, que sabemos hoje pertencer ao gênero Ephedra, da qual se pode obter a efedrina. (5) O imperador Cho-Chin-Kei descreveu as propriedades do ginseng e da cânfora (6). Placas de argila da Assíria e Babilônia mostravam que os seus médicos utilizavam-se de várias plantas com fins terapêuticos, entre elas a cebola, para tratamento de doenças oculares. Na Índia, o tratado médico atribuído a Susruta, apresenta uma relação de 760 ervas com propriedades medicinais. Susruta destaca ali as propriedades da beladona, planta muito tóxica. (5)
Na cultura ocidental, de modo independente dos avanços no conhecimento dos medicamentos baseados nas plantas desenvolvidos pela medicina racional dos gregos, os antigos romanos criaram, empiricamente, seu próprio conhecimento sobre o emprego medicinal dos vegetais. Os tratamentos das doenças com base nas ervas e outras plantas medicinais chegaram até nós graças às obras de diversos autores da época, principalmente de médicos e enciclopedistas, como os trabalhos de Catão, O Censor, Plínio, O Velho, Celso, Dioscorides e Galeno.
Durante muito tempo os cuidados com os doentes em Roma eram prestados dentro do próprio ambiente familiar, pelo paterfamilias, que era responsável pelo tratamento de seus familiares e também dos criados, escravos e animais. Esse tipo de medicina era fundado na tradição, com base no conhecimento empírico do efeito terapêutico de ervas, cultivadas no próprio ambiente e ministradas muitas vezes conjuntamente com rituais cantados e falados, de natureza religiosa e mística. (7)
Grosso modo, podem ser identificadas três etapas na evolução da medicina romana: a primeira, exclusivamente tradicional e empírica, que vigorou desde os primórdios da civilização romana até por volta do século III a.C. quando começou a se verificar o processo de penetração da medicina grega, com a chegada dos primeiros médicos da Grécia, atraídos pela possibilidade de adquirirem fortuna e fama em vista da pujança econômica e política de Roma. Por fim, podemos identificar o processo de “romanização” da medicina grega, hipocrática e alexandrina, que se inicia por volta do primeiro século de nossa era e vai se consolidar com Galeno, em meados do século II d.C. (8)
Assim, numa medicina em que os médicos e seus tratamentos conviviam com a medicina tradicional do paterfamilias, muitos dos tratamentos eram baseados na observação do efeito de plantas, tema deste trabalho, no qual procuraremos identificar e avaliar o emprego das ervas com propriedades terapêuticas mais utilizadas pelos romanos.
A medicina baseada na tradição dos primeiros tempos de Roma tinha também forte apelo de um sentimento de rejeição ao saber médico grego. O estilo de pensamento da medicina da época é observado nos escritos de Catão, o Censor. Marcio Porcio Catão que viveu entre 234 e 149 a.C. era um ferrenho defensor das tradições romanas e rejeitava veementemente a penetração da cultura helenística em Roma e particularmente a da medicina. Ele foi um dos primeiros enciclopedistas e escreveu um tratado, uma espécie de manual chamado De Agri Cultura no qual, em alguns capítulos, podem ser encontradas orientações para os cuidados médicos que deviam ser adotados para os escravos e para o gado. Entre os medicamentos preconizados por Catão, destacam-se aqueles que eram preparados com abóbora; crua ou cozida, ingerida ou aplicada nas feridas e lesões. Quando os tratamentos com a abóbora não curavam os escravos, Catão recomendava que eles deveriam ser colocados em liberdade. (9) No De Agri Cultura, ele recomendava remédios para vários tipos de afecções e apresentava a receita detalhada para a preparação e uso do medicamentum. Para dores abdominais e problemas intestinais causados por tênias e lombrigas ele recomendava: Pegue 30 romãs ácidas, esmague, coloque em uma jarra com três congii[1] de vinho preto forte e feche o recipiente. Trinta dias depois abra e use. Tome uma hemina[2] antes de comer. Com uma receita com folha de romã, vinho envelhecido, raiz de funcho, incenso, mel cozido e vinho de manjericão, era possível eliminar os vermes e tratar a dispepsia. Era necessário, entretanto que o paciente subisse em uma pilastra e pulasse para baixo dez vezes. (10)
Galeno, o mais célebre dos médicos de Roma utilizava-se muito do ópio como analgésico, antitussígeno, obstipante e soporífero. Acabou também por identificar sua capacidade de provocar dependência, o que pode ter ocorrido com um dos seus pacientes ilustres, o imperador Antonino. O ópio era usado com fins menos nobres que o de aliviar a dor. Consta que Agripina envenenou Britanicus colocando ópio no vinho, para favorecer a ascensão de seu filho Nero como imperador. A popularidade do ópio junto aos romanos pode ser identificada na numismática, quando moedas do final do império tiveram cunhadas a papoula em uma de suas faces (3).
Outros achados arqueológicos revelaram que os médicos tinham suas caixas de medicamentos, feitas de madeira, com compartimentos individualizados para diferentes medicamentos, que podiam conter incenso, mirra, pétalas de rosa e de íris, açafrão, bulbos secos de cebola, rizomas de íris, cera de abelha. (11)
Num próximo post continuaremos com o tema, comentando a obra de Plinio, Celso e Dioscorides
Bibliografia consultada
1. Giachi C, et all. Ingredients of a 2,000-y-old medicine revealed by chemical, mineralogical, and botanical investigations. Proceedings of the National Academy of Sciences. 2013.
2. Rezende, Joffre. Droga, Fármaco, Medicamento, Remédio. http://usuarios.cultura.com.br/jmrezende/droga.htm. [Online] [Citado em: 01 de 08 de 2010.]
3. Duarte, Danilo F. Uma breve história do ópio e dos opiáceos. Revista Brasileira de Anestesiologia. 55, 2005, Vol. 1, pp. 135 - 146.
4. Crellin, John. Plantas medicinales. [A. do livro] Roy assessor editorial Porter. Medicina, La historia de la curación. Lisboa : Lisma ediciones, 2002.
5. Margotta, Roberto. História Ilustrada da Medicina. [trad.] Marcos Leal. São Paulo : Editora Manole Ltda, 1998.
6. Santos, Ana Catarina, et al., et al. Recolha de dados sobre consumo de medicamentos e/ou suplementos à base de plantas medicinais numa amostra da população de Lisboa e Vale do Tejo. Revista Lusófona de Ciências e Tecnologia da Saude. 5, 2008, Vol. 2, pp. 128-141.
7. Sousa, Maria Adriana S. M. A arte médica em Roma antiga nos De Medicina de Celso. Ágora. Estudos Clássicos em Debate. 7, 2005, pp. 81-104.
8. Vieria, Ana Thereza B. O médico e a medicina em Roma. http://www.letras.ufrj.br/pgclassicas/medicinaana.pdf. [Online] [Citado em: 30 de 07 de 2010.]
9. Cule, John. La Historia de la Medicina. [A. do livro] Roy (Assessor editorial) Porter. Medicina, La historia de la curación. Lisboa : Lisma Ediciones, 2002.
10. Catão. De Agri Cultura. http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Cato/De_Agricultura/home.html. [Online] [Citado em: 17 de 08 de 2010.]
11. Scarborough, John. Drugs and medicines in the Roman World. Expedition. 1996, Vol. 38, 2.
[1] Congii =plural de congius= medida de volume romano que corresponde a cerca de 3,25 litros atuais.
[2] Hemina= medida de volume romana que correspondia a cerca de 270 ml
Nenhum comentário:
Postar um comentário