domingo, 27 de outubro de 2013

Descoberto ‘segredo’ em veneno de formiga

Jornal da UNICAMP
Campinas, 02 de setembro de 2013 a 08 de setembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 573

Pesquisa revela que são 4 as configurações de alcaloide em espécie de lava-pés, em vez de duas, como registrado até então


Texto: CARLOS ORSI  Fotos: Antoninho Perri  Edição de Imagens: Diana Melo
Para quem sofre com a dor da picada e as reações alérgicas talvez não faça muita diferença, mas no veneno das formigas Solenopsis saevissima, uma das espécies popularmente conhecidas como lava-pés, escondem-se sutilezas tão importantes quanto inimagináveis, reveladas em uma tese de doutorado defendida no Instituto de Química (IQ) da Unicamp.

Quem só conhece a química do Ensino Médio deve se lembrar de que as moléculas eram descritas por fórmulas que nada mais são do que listas abreviadas de átomos – como H2O, que diz que a água é formada por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio.

Fórmulas assim, no entanto, contam apenas uma parte da história: as moléculas, afinal, existem num espaço de três dimensões, não na superfície plana da folha de papel, e a posição de seus constituintes – a estrutura tridimensional, ou configuração absoluta – muitas vezes faz diferença.

“É como as mãos de uma pessoa”, exemplificou Anita Jocelyne Marsaioli, professora titular do IQ. “Uma é a imagem especular, o reflexo no espelho, da outra. Por isso mesmo, não são idênticas. Dá para perceber isso quando tentamos sobrepô-las”.

A professora oferece um exemplo ainda mais visual: olhando a palma da mão esquerda, vê-se que, para ir da ponta do polegar à do dedo indicador e à do dedo médio, é preciso fazer um deslocamento no sentido horário; já no caso da palma da mão direita, o movimento tem de ocorrer no sentido anti-horário. Os elementos – polegar, indicador, médio, anular – estão em posições relativas iguais, mas a orientação no espaço muda. “A configuração relativa dos dedos é a mesma, mas a absoluta difere”, explicou ela.

Em sua tese de doutorado, orientada pela professora Anita, Adriana Pianaro demonstrou que o veneno da formiga S. saevissima contém todas as quatro configurações espaciais possíveis do alcaloide 2-metil-6-undecilpiperidina, em vez de apenas duas, como registrava a literatura científica até então. A descoberta só foi possível graças a uma nova metodologia de análise dos venenos, também desenvolvida por Adriana e descrita em artigo publicado no periódico Tetrahedron: Asymmetry, em 2012. A criação do processo rendeu à brasileira um convite para trabalhar nos Estados Unidos.

Como relatou o professor José Roberto Trigo, do Departamento de Biologia Animal do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, as lava-pés são uma praga no sul dos EUA, principalmente nos Estados mais quentes, como Flórida, Texas e Arizona. “No Brasil ela é nativa, e é controlada por inimigos naturais e competidores. Lá, ela não tem os inimigos naturais, e compete com as formigas norte-americanas, muitas vezes com sucesso, e acaba eliminando as formigas de lá. Além de a Solenopsis ser extremamente agressiva, predando até mesmo filhotes de pequenos pássaros, pequenos lagartos”. Os americanos, que chamam as lava-pés de fire ants (“formigas de fogo”), vinham buscando um modo de fazer o controle biológico da praga.

“Os pesquisadores dos EUA conheceram o nosso trabalho com as formigas lava-pés e ficaram interessados em que eu fosse até o laboratório deles sintetizar os alcaloides, mas não aceitei o convite, porque estava iniciando um pós-doutorado em outro grupo de pesquisa”, disse Adriana.

APLICABILIDADE

Há estudos que apontam possíveis usos tecnológicos e médicos de alcaloides do veneno das formigas Solenopsis. Entre as aplicações, algumas já patenteadas, há usos como inseticida, antibiótico, na eliminação de fungos e, também, na quimioterapia. Um artigo publicado em 2007 por pesquisadores americanos mostra que um alcaloide de Solenopsis é capaz de inibir a angiogênese – a formação de novos vasos sanguíneos a partir de vasos preexistentes. Essa seria uma propriedade útil no controle de tumores. Em meados de julho, o serviço de transferência de tecnologia da Universidade Emory (EUA) publicou uma nota em seu website dando conta da realização de testes de derivados do veneno de formiga, in vitro, contra melanomas e angiossarcomas (um tipo de câncer que atinge o revestimento dos vasos sanguíneos).

Além de determinar que todas as quatro formas tridimensionais do alcaloide existem no veneno da S. saevissima, a pesquisadora descobriu também que a proporção da mistura das diferentes formas varia, dentro de um mesmo formigueiro, de acordo com o tamanho do inseto. “Observei que existe uma diferença no veneno das operárias de tamanhos diferentes no mesmo ninho de S. saevissima. E elas têm tamanhos diferentes não por causa da idade”, explicou, mas porque a cada tamanho adulto corresponde um tipo de trabalho dentro do ninho.
O veneno das rainhas também diferia do das operárias, o que sugere que a composição está, de algum modo, relacionada à função do inseto dentro da sociedade do formigueiro. “Conforme aumenta o tamanho da operária, a composição química do veneno fica mais próxima da composição química do veneno das rainhas”, disse a pesquisadora. Foram analisados venenos de operárias e rainhas de formigas lava-pés da região sudeste do Brasil, especificamente de cinco ninhos do distrito de Pedro do Rio (Petrópolis-RJ), e de três ninhos de Ubatuba (SP).

“Tudo indica que o veneno é importante na comunicação química interna dos indivíduos de um mesmo ninho”, disse Adriana. “O ninho é formado majoritariamente de fêmeas – operárias e rainhas – e a importância da presença do veneno nas rainhas ainda não foi determinada”, já que essa casta de formigas normalmente não tem de lidar com invasores. É possível que o veneno das rainhas ajude a proteger os ovos, principalmente, de infestação por fungos.

O biólogo Eduardo Fox, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que também estuda as lava-pés e colaborou no trabalho de Adriana, disse ao Jornal da Unicamp que se sabe “quase nada” sobre a biologia do veneno nas rainhas. “Penso que, além de agir como fungicida ou bactericida sobre os ovos, o veneno deve possuir um papel importante na identificação de casta e espécie”, disse ele. “Os alcaloides de veneno são muito abundantes e podem ser espalhados no ambiente, logo imagino que sejam importantes para a comunicação. Além dos alcaloides, existem proteínas fixadoras de odor presentes no veneno destas formigas, que devem passar mensagens para as demais”.

Fox acredita ser possível que existam compostos no veneno das rainhas que passam mensagens que modulam a organização social da colônia. “Este é um dos principais temas do meu próximo projeto de pos-doutoramento”.

Diferenças na estrutura tridimensionais das moléculas, e nas concentrações das diferentes estruturas, podem parecer meros detalhes, mas não é assim: em sua tese, Adriana cita o caso, já conhecido pela ciência, da mariposa do bicho-da-seda, que produz um feromônio sexual. Os machos, no entanto, respondem a apenas uma das quatro formas possíveis da molécula. “Uma única mudança (...) diminuiu sua atividade biológica bilhões de vezes”, diz o texto do trabalho.

Seres humanos também podem ser sensíveis à mudança na geometria das moléculas. “Um exemplo clássico para nós, seres humanos, é a distinção olfativa de aromas e perfumes”, disse ela. “Sem saber, nós conseguimos diferenciar a configuração absoluta do composto orgânico denominado limoneno, que é um dos componentes principais do aroma das cascas das laranjas e dos limões”. Uma das estruturas tridimensionais do limoneno dá o cheiro característico da casca do limão e outra, o aroma da casca da laranja.

Na questão do controle da praga de formigas lava-pés no sul dos Estados Unidos, o trabalho de Adriana mostra que identificar e separar as diferentes espécies de Solenopsis presentes no país pode ser ainda mais difícil do que o esperado. “Os biólogos não conseguem diferenciar estas formigas facilmente por estudos taxonômicos, por isso estão muito interessados na composição dos alcaloides e hidrocarbonetos cuticulares, para conseguir distinguir as espécies mais rapidamente por quimiotaxonomia”, disse ela. Esses hidrocarbonetos são moléculas que existem na superfície externa (cutícula) – na “pele” – das formigas.

O estudo feito pela pesquisadora brasileira mostrou que a composição do veneno muda não apenas entre indivíduos de um mesmo ninho, mas também entre diferentes ninhos de uma mesma espécie. “Por isso, os alcaloides não poderão ajudar na diferenciação das espécies”.

As moléculas que Adriana estudou pertencem à família dos alcaloides, que contém diversas substâncias tóxicas, como o ópio e a nicotina, mas alcaloides provavelmente não são os principais culpados pelos efeitos da picada da Solenopsis nas pessoas. “Alguns estudos revelaram que são as proteínas do veneno das formigas lava-pés que são as grandes responsáveis pelas reações alérgicas nos seres humanos. Até agora, nenhum estudo indica que os alcaloides são responsáveis”, disse a pesquisadora.

O trabalho de Adriana teve como foco a padronização da metodologia para a análise da 2-metil-6-undecilpiperidina no veneno da S. saevissima, mas há ainda outros alcaloides no veneno dessa espécie – bem como no de outras espécies de Solenopsis. Uma pesquisadora de pós-doutorado do IQ, Francisca Diana da Silva Araújo, também vinculada ao laboratório de Anita Marsaioli, vem estudando a configuração de dois alcaloides, diferentes dos pesquisados por Adriana, em várias espécies de lava-pés encontradas em diversas regiões do Brasil.

Para Adriana, as descobertas sobre os venenos dos insetos sociais lembram um ensinamento da sabedoria popular. “No interior do Paraná, onde nasci e fui criada, as pessoas sempre diziam que tomar uma picada de abelha e formiga era remédio, como uma vacina. Pelo jeito, isto está sendo comprovado, quimicamente, como um fato verdadeiro”, disse ela.

Publicação
Tese: “Ecologia química de Melipona quadrifasciata lepeletier, Mcaptotrigona aff. depilis moure e Solenopsis saevissima smith
Autora: Adriana Pianaro
Orientadora: Anita Jocelyne Marsaioli
Unidade: Instituto de Química (IQ)

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