Publicado em fevereiro 10, 2014 por Redação
[EcoDebate] Comer: mastigar e esmigalhar o alimento na boca e passá-lo ao estômago, segundo a definição da Real Academia Espanhola. Comer, no entanto, é bem mais que engolir alimentos. Comer de maneira sã e consciente implica interrogar-se sobre de onde vem o que consumimos, como se elaborou, em que condições, porque pagamos um determinado preço. Significa tomar o controle sobre os nossos hábitos alimentares e não delegar. Ou por outras palavras, significa ser soberanos, poder decidir, quanto à nossa alimentação. Esta é a essência da soberania alimentar.
Foi em 1996 que o movimento internacional de agricultores A Via Campesina pôs pela primeira vez apresentou este conceito, coincidindo com uma cúpula da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) em Roma. Um dos principais objetivos era promover a agricultura local, camponesa, a pequena escala e acabar com as ajudas que recebe a agroindústria para a exportação e com os excedentes agrícolas, que fazem a concorrência desleal aos pequenos produtores. Hoje, esta reivindicação já não se circunscreve apenas ao mundo camponês, mas também é reclamada por amplos setores sociais. Alimentar-se, e poder decidir como o fazer, é coisa de todos.
O conceito de soberania alimentar foi definido formalmente pela Via Campesina como “o direito de cada nação a manter e desenvolver os seus alimentos, tendo em conta a diversidade cultural e produtiva”. Em resumo, ter soberania plena para decidir o que se cultiva e o que se come. As políticas agrícolas e alimentares atuais, no entanto, não o permitem. Quanto à produção, muitos países viram-se obrigados a abandonar a sua diversidade agrícola a favor de monoculturas, que só beneficiam um punhado de empresas. A nível comercial, a soberania de muitos países está dependente dos diktats da Organização Mundial do Comércio. E isto, para dar apenas um par de exemplos.
A essência da soberania alimentar reside em “poder decidir”: que os agricultores possam decidir o que cultivam, que tenham acesso à terra, à água, às sementes, e que os consumidores tenhamos toda a informação sobre o que consumimos, que possamos saber quando um alimento é transgênico ou não. Tudo isto hoje é impossível. Especula-se com a terra, privatizam-se as sementes, a água é cada dia mais cara, com a etiqueta de um produto mal sabemos o que comemos, o Estado espanhol é uma das principais zonas de cultura de transgênicos na Europa. A lista poderia continuar.
Como levar, então, esta soberania alimentar à prática? Participando em grupos e cooperativas de consumo ecológico, hortas urbanas, cozinha comprometida e de km0, comprando diretamente a camponeses locais e ecológicos. Trata-se de iniciativas que põem em contacto produtores e consumidores, que estabelecem relações de confiança e solidariedade entre o campo e a cidade, que fortalecem o tecido social, que criam alternativas produtivas no quadro da economia social e solidária, e que demonstram que há alternativas.
O repto é fazer chegar esta soberania alimentar ao conjunto da população. E para isso são necessárias mudanças políticas. No Estado espanhol é urgente que se proíba o cultivo de transgênicos, que contaminam a agricultura convencional e ecológica, faz falta um banco público de terras que torne a terra acessível àqueles que querem viver e trabalhar no campo, é imprescindível uma Lei do artesanato adequada às necessidades do pequeno artesanato, é chave reconverter os refeitórios de centros públicos (escolas, residências, universidades, hospitais… ) em refeitórios de cozinha ecológica e de proximidade com a compra de produtos ao campesinato local, e introduzir o “saber comer” no curriculum escolar .
A soberania alimentar é possível. Tudo depende de nós, de tomar consciência, construir em nosso dia a dia e exigir que se leve à prática. Se queremos, podemos.
*Artigo publicado inicialmente em etselquemenges.cat, a 16 de janeiro de 2014. Trad. Português: Esquerda.net.
**Esther Vivas, Colaboradora Internacional do Portal EcoDebate, é ativista e pesquisadora em movimentos sociais e políticas agrícolas e alimentares, autora de vários livros, entre os quais “Planeta Indignado”. Esther Vivas é licenciada em jornalismo e mestre em Sociologia. Seus principais campos de pesquisa passam por analisar as alternativas apresentadas por movimentos sociais (globalização, fóruns sociais, revolta), os impactos da agricultura industrial e as alternativas que surgem a partir da soberania alimentar e do consumo crítico.
EcoDebate, 10/02/2014
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