Por Carlos Vieira, Mayra Matuck Sarak, Patrícia Tambourgi, Tatiana Venancio
10/12/2012
10/12/2012
"O mal do mundo é que os cientistas
vivem descobrindo novas espécies de doenças
quando deveriam descobrir
uma forma definitiva de saúde"
Millôr Fernandes
No livro Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley apresenta a história de uma sociedade do futuro em que a maior parte da população é psicologicamente condicionada a ter determinados padrões de comportamento socialmente harmônicos. Embora essa obra seja de 1932, o debate não poderia ser mais atual: é possível, afinal, controlar o comportamento humano?
A resposta não é simples. No nível da coletividade, é interminável o debate sobre a influência de projetos políticos e sua capacidade de manipular as sociedades. No nível individual, contudo, o que se vê é um número cada vez maior - principalmente nas grandes cidades, onde o ritmo de vida é mais agitado - de pessoas saudáveis, sem o diagnóstico de transtorno psiquiátrico, consumirem remédios que seriam destinados para quem tem algum problema de saúde mental. Trata-se de uma crescente tendência de se tentar domar o que há de mais subjetivo no ser humano: o próprio "eu". Como resultado, "perde-se uma dimensão inexplicável da vida, da ordem do humano que não se transcreve com objetividade", comenta a psicanalista da Universidade de São Paulo (USP), Renata Guarido.
Tarja preta: um sonho de consumo
A grande arma daqueles que querem colocar limites ao próprio comportamento está em um lugar pouco suspeito: as farmácias. Por um lado, maior capacidade cognitiva e de concentração, relaxamento, prazer. Por outro, menos depressão, sofrimento por causa de perdas, medo de viajar etc. E, tudo isso, na farmácia mais próxima de você. "Os remédios são vendidos como qualquer outro produto, como se vende um carro. O remédio é um objeto de consumo", analisa Guarido, especializada em medicalização do sofrimento psíquico.
São vários os motivos por trás da procura excessiva por medicação. A busca pelo sucesso é uma delas. "Por causa das exigências (da sociedade, do mercado de trabalho), as pessoas acabam buscando na medicação uma forma de melhora do desempenho cognitivo", conta Guilherme Polanczyk, professor de psiquiatria da infância e adolescência da USP. Concurseiros de plantão que o digam. Ritalina, remédio tarja preta cujo efeito aumenta a capacidade de concentração, é o sonho de consumo daqueles que querem estudar mais de oito horas por dia sem perder o pique e cochilar sobre os livros.
A Ritalina tem como princípio ativo o cloridrato de metilfenidato. Essa droga costuma ser usada para diminuir a hiperatividade em pessoas diagnosticadas com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), especialmente crianças. "Há pessoas que pensam que (a droga) é uma ferramenta, uma tecnologia nova que se desenvolveu. E imaginam: ‘se ela for ministrada de forma segura, por que não usar?'", explica o psiquiatra da USP.
Ciúme enjaulado
Até um sentimento corriqueiro como o ciúme poderá ser medicalizado em breve. Em estudo publicado na revista Science, em 2009, pesquisadores do Instituto Nacional de Ciências Radiológicas, no Japão, conseguiram mapear a região do cérebro acionada quando uma pessoa tem esse sentimento, o córtex anterior cingulado. Foi o suficiente para abrir o caminho para se encontrar uma droga que lide com o tormento de personagens como Othelo, de Shakespeare, e de tantas pessoas comuns.
Não é de hoje que os estudos sobre o ciúme são feitos. Em 1994, pesquisa da Universidade de Monash, da Austrália, publicada no The British Journal of Psychiatry,concluiu que características como baixa autoestima e alto consumo de bebida alcoólica tendem a aumentar o grau desse sentimento.
Se for desenvolvido um remédio para "curar" o ciúme - como se ele fosse uma patologia -, certamente as vendas atingirão altas cifras. Enquanto comportamento indesejado, o ciúme supostamente será controlado, mas e as suas causas serão também combatidas? Teremos pessoas mais equilibradas ou apenas mais controladas?
O rótulo que alivia
Diagnosticada como tendo um transtorno mental, a norte-americana Susanna Kaysen é encaminhada ao Hospital Psiquiátrico McLean em 1967. É no contato com outras garotas lá internadas, com vários sintomas ambíguos e com transtornos mentais diversos que Susanna adquire uma das experiências mais significativas de sua vida, o que a leva a escrever o livro de memórias Garota interrompida, que foi transformado em roteiro de cinema em 1999.
No ano em que Susanna foi internada, vigorava ainda a primeira edição, de 1952, doManual de diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), obra de referência editada pela American Psychiatric Association. Coincidência ou não, décadas depois, a intérprete de Susanna no filme, a atriz Winona Ryder, também seria apontada como pessoa com um transtorno psiquiátrico, a cleptomania. Ryder, contudo, já foi diagnosticada com base na quarta edição do DSM.
Em maio de 2013, deverá ser lançada a quinta edição do Manual, o DSM V. De 1952 a 2013 - lamentaria Millôr Fernandes -, o número de definições de transtornos mentais só aumenta: enquanto na primeira edição estavam listadas 106 categorias de transtornos, na última, de 1994, havia 297. A próxima edição deverá trazer, catalogados, mais uma centena de novos transtornos. A proposta do manual é descritiva, busca a objetivação dos sintomas.
"Cada vez mais existe uma tendência em entender cada uma das manifestações humanas, explicar por um funcionamento neurobiológico cada um dos comportamentos humanos", analisa Guarido, da USP. Como consequência, oferece-se um alívio para a dor sem trabalho psíquico. "As pessoas tratam o sofrimento como uma doença. Dizem coisas do tipo ‘quando soube que tinha depressão foi um alívio' ou ‘foi um alívio saber que sou bipolar, isso justifica tudo'", relata. Segundo a psiquiatra Marisa Nieri, de São Paulo, a necessidade que subjaz ao alívio está diretamente relacionada com o fato de que "temos tendência em ocultar nossas imperfeições". "Os sintomas (de um transtorno) são exarcebações de condutas ou sentimentos normais que nos fogem ao controle", explica.
Medicalização excessiva posta em xeque
No Brasil, o debate sobre a medicalização ganhou destaque, em 2010, após a realização do I Seminário Internacional sobre a "Educação medicalizada: dislexia, TDAH e outros supostos transtornos", no qual foi lançada, em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, a campanha nacional "Não à medicalização da vida".
A campanha propõe um manifesto contra o excesso do consumo de medicamentos. Dentre outros, os remédios utilizados para tratar transtornos cognitivos como déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e dislexia são os mais citados nos debates. Por volta de 45 entidades espalhadas pelo Brasil assinaram o manifesto.
As crianças são o alvo principal. "No nosso ponto de vista, a causa (dos supostos transtornos) está no processo de escolarização, na relação com os pais. Se não modificarmos esses processos, a medicação também não resolverá. Nós temos chamado atenção para essa questão porque os médicos não vão à escola, não vivem a experiência da escolarização", explica a psicóloga Marilene Proença, do Conselho Federal de Psicologia e da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional.
A campanha lançada na Câmara Federal visa conscientizar a população de que a partir de mudanças significativas na educação, muitos casos tratados como transtornos cognitivos serão minimizados e até resolvidos sem a necessidade de medicação.
O psiquiatra Guilherme Polanczyk, da USP, discorda. Segundo ele, atualmente, somente cerca de 10% das crianças que possuem TDAH são medicadas no Brasil, sendo que esse número chega a 40% nos Estados Unidos. Já Proença, defensora da campanha, rebate com o seguinte argumento: "O que chamamos de excesso, para os psiquiatras é falta". Com quem estará a razão nesse debate? Como leigos, nos cabe refletir sobre o que diz Millôr Fernandes e ficar precavidos para não chegarmos a uma sociedade como aquela preconizada por Aldous Huxley.
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