sexta-feira, 19 de abril de 2013

O que seria da nossa alimentação sem as frutas?

Gil Felippe


Hoje quem vive sem frutas? Quem é capaz de passar um dia sem comer uma fruta, várias frutas ou uma salada de frutas? Frutas fazem parte de nossos hábitos alimentares diários. A família, a escola, os jornais, as revistas, a televisão, o rádio estão sempre a insistir que as frutas são alimentos essenciais.

Mas, nem sempre foi assim. No mundo ocidental, isto é, na Europa, as frutas passaram a ser apreciadas como alimento nutritivo só lá pela Idade Média. Só no século XIV foi que terminou o desprezo que os europeus tinham pelas frutas. A primeira fruta a quebrar a má reputação delas foi a laranja. Uma planta asiática! Um bom exemplo do uso da laranja é um pudim da Idade Média, que hoje nós chamaríamos de bolinho frito, que é apresentado no livro Entre o jardim e a horta – as flores que vão para a mesa, Gil Felippe, 2003, Editora Senac – São Paulo. Eis a receita desse pudim medieval.

PUDIM DE ATANÁSIA

laranja
açúcar, a gosto
inflorescências de atanásia, a gosto
7 ovos, menos 2 claras
575ml de creme de leite
tomilho, a gosto
manjerona, a gosto
salsinha, a gosto
folhas de morango, a gosto
noz-moscada ralada, a gosto
1 prato raso de pão branco ralado

Picar finamente as flores de atanásia (uma planta da família das compostas, a mesma do girassol), tomilho, manjerona, salsinha e folhas de morango. Misturar muito bem com todos os outros ingredientes, com exceção da laranja e do açúcar. Fritar em porções, sem deixar dourar demais. 

Espremer as laranjas para tirar o suco. Misturar o suco da laranja com o açúcar e umedecer o pudim já frito.

A laranja já era mencionada na literatura chinesa 2400 anos antes da era cristã. Teofrastes em 310 a.C. já dera uma boa descrição dessa fruta. A laranjeira vinda do Oriente, chegou à Europa pelo Mediterrâneo, trazida pelos árabes, e atingiu Portugal antes deste ser mesmo um país. As laranjeiras cultivadas pelos reis da França, desde Francisco I até Luís XV, eram originadas de uma laranjeira importada de Pamplona na Espanha. Eram todas produtoras de laranja-azeda. As laranjas doces eram levadas para a Europa, da Índia e da China, pelos portugueses. Já a primeira laranjeira (de laranja-doce), vinda da China, só chegou a Portugal em 1630 e lá floresceu. Passou a ser cultivada e passou a ter muito mais sucesso que a laranja-azeda que era a única na Europa. Para o Brasil sementes e mudas foram trazidas de Portugal. A partir de então outras frutas passaram a fazer parte da dieta da população européia. Assim a pera era uma das frutas favoritas do rei francês Luís XIV.

O doce feito do marmelo, a marmelada, era o doce mais popular na Europa nos séculos XVI e XVII e muito popular na Inglaterra, na época da rainha Vitória. O marmelo era tão popular e uma fruta tão importante na Europa que na época colonial o marmeleiro era muito cultivado no estado de São Paulo. Era de São Paulo exportado para a Europa pelos portugueses. Na verdade, o marmelo foi o primeiro produto de exportação de São Paulo, antecedendo de muito o café.

O pêssego só foi introduzido na América do Norte no século XVI, antes da chegada dos ingleses e no Brasil, por Martim Afonso de Sousa, em São Vicente, em 1532 proveniente da ilha da Madeira. Já o abacaxi, considerada a mais saborosa fruta da América, só passou a ser conhecida e apreciada pelos europeus lá pelo século XVI. Os portugueses levaram o abacaxi do Brasil para a África em 1505, para a Índia em 1518 e para as Filipinas em 1558. Enfim, frutas passaram, logo após a Idade Média, a ser parte da alimentação européia. E mais e mais frutas foram chegando à Europa passando a fazer parte da alimentação.

Quando se estuda a reprodução das plantas que produzem flores, as angiospermas, tem-se o fruto, que engloba as sementes que são responsáveis pela propagação da espécie considerada. Como exemplos de frutos têm-se a goiaba e a vagem do feijão. Mas, precisamos considerar também o pseudo-fruto simples e as infrutescências, que são pseudo-frutos múltiplos. O pseudo-fruto simples é o caju, o fruto do caju é a castanha-de-caju; aquela parte da qual se faz suco é o pedúnculo intumescido da flor, portanto não é um fruto, mas um falso fruto. E infrutescência é um conjunto de frutos, que é o caso do abacaxi. Tudo isto pode ser visto no livro Frutas –sabor à primeira dentada, Gil Felippe, 2005, Editora Senac-São Paulo. O que chamamos de frutas são os frutos, pseudo-frutos e infrutescência que são carnosos, suculentos, adocicados, ácidos e, sobretudo, comestíveis. Portanto, fruta é um tipo especial de fruto, pseudo-fruto e infrutescência. Frutas seriam, então, os frutos e pseudo-frutos que se comem como sobremesa ou com que se fazem doces. Uma fruta deve ser rica em água e pode ser muito rica em açúcares (carboidratos), mas obrigatoriamente muito pobre em gordura. A relação entre açúcar e gordura deve ser bem alta. Mas, como toda regra tem exceção, aqui também há exceção.

A exceção é o abacate. O abacate é a única fruta que é muito rica em gordura e muito pobre em açúcar. Em um quilo de polpa de abacate há apenas 58g de açúcares e dependendo da variedade de abacate entre 120 e 250g de gordura. Isto significa que há abacates que um quarto da polpa é gordura! No abacate a relação entre açúcar e gordura é menor que 1. O conteúdo de carboidratos é quase a metade daquele encontrado na laranja. Mas, o abacate só é considerado fruta no Brasil e em poucos outros países. Na maioria dos países é utilizado como uma hortaliça. Como os brasileiros não estão interessados em definições, ele é para nós uma das frutas mais apreciadas. Como já disse, para o resto do mundo é uma hortaliça, usada em saladas, muitas vezes com camarões, e em molhos como o guacamole. Para os europeus, principalmente para os ingleses, é a mais deliciosa das hortaliças.

Em geral as frutas não são conhecidas por seu conteúdo alto de proteínas. Hortaliças como os brócolis e a alcachofra, que botanicamente são inflorescências, apresentam 30g de proteína por quilo, enquanto o feijão, que é uma semente, cerca de 230g. Das frutas o que interessa é o conteúdo em açúcar e em certas vitaminas.

Porém, não é só energia que as frutas nos dão. Elas são uma boa fonte de vitaminas e sais minerais. Vamos a alguns exemplos para ilustrar. A manga é rica em vitamina A, enquanto o abacate além da vitamina A, é rico nas vitaminas B e E e em potássio. Vitamina C é encontrada no caju, no abacaxi (que também é rico em vitamina B), na laranja, no morango, na nêspera-japonesa, no kiwi, no mamão, na acerola, na goiaba, na jabuticaba, na pitanga, enfim numa infinidade de frutas. O morango é rico em vitamina B9, silício, potássio e magnésio. Já o maracujá é rico nas vitaminas do complexo B e em muitos sais minerais, entre eles o ferro e o fósforo.

A abóbora jovem, a abobrinha, é uma hortaliça, mas quando amadurece ela é uma fruta, que dependendo da receita pode ser usada como hortaliça. Quando se faz quibebe ou sopa, ela é uma hortaliça. Quando se faz doce de abóbora com coco ela é uma fruta. Mas, é como fruta que faz sucesso no Brasil, empregada como compotas, tortas, doces em calda e doces em pedaço. Em Portugal a abóbora madura pequena, da qual são feitas tortas doces muito gostosas, é chamada gila ou chila. A abóbora é conhecida desde a cultura pré-colombiana, sendo associada à civilização nas Américas, constituindo com o milho e o feijão, a base alimentar das culturas inca, asteca e maia.. No México foi mostrada a existência de abóboras entre 5000 e 7000 anos a.C..

Há duas frutas que já foram muito populares no Brasil e hoje estão praticamente esquecidas. Não seria a hora de uma reavaliação e de tentar devolvê-las ao mercado consumidor? Uma delas é o jambo e a outra é o cambuci.

Desenho: Maria Cecília Tomasi
O jambo, que era tão comum nos quintais do interior do estado de São Paulo é uma fruta rara hoje em dia. A rose-apple dos ingleses é amarelada, com leve gosto adocicado e com aroma de rosas. É oca, a semente parece solta dentro dela. A fruta é muito utilizada ao natural, mas também é usada para geleias e compotas. É muito apreciada pelas crianças.

Não é uma fruta brasileira. Botanicamente é conhecida como Syzygium jambos e é originária do sudeste da Ásia. Foi trazida para cá pelos portugueses. A árvore do jambo vive mais de cem anos e na época da floração há o delicioso perfume adocicado das flores. O jambo de que estamos falando não deve ser confundido com o jambo-vermelho, tão comum no nordeste, que é o Syzygium malaccensis, outra fruta exótica, proveniente da Ásia. Esses dois jambos são da mesma família botânica que engloba a goiaba, a pitanga, a jabuticaba, a uvaia e o cambuci.

Desenho: Maria Cecília Tomasi


Já o cambuci é uma fruta bem brasileira, na verdade uma fruta paulista.

Botanicamente o cambuci é chamado de Campomanesia phaea. A árvore atinge oito metros de altura, originária da Mata Atlântica na vertente da Serra do Mar que dá para o planalto da cidade de São Paulo e do próprio planalto. O cambuci, isto é, a fruta tem uma forma muito peculiar. É ovoide-romboidal, com uma crista horizontal, mais ou menos na região do seu equador, dividindo-a em duas partes: lembra a forma de um disco voador ou uma urna ou pote de água dos índios. É por esta razão que se acredita que o nome cambuci vem da palavra tupi-guarani para pote de água. A frutificação ocorre de fevereiro a abril e o fruto, com seis centímetros de diâmetro, tem casca fina verde-amarelada e polpa aquosa. Quando maduro é muito mole, partindo-se quando cai ao solo.

O cambuci é uma espécie em perigo de extinção, que era muito freqüente na cidade de São Paulo, no Largo do Cambuci. Devido a sua presença bastante comum e em sua homenagem é que foi dado o nome de Cambuci ao conhecido bairro da cidade de São Paulo. Parece que não há nenhum pé de cambuci naquele bairro hoje em dia. Mas, como cambuci também significa pote, pode ser que o nome do bairro tenha essa origem. Pouca gente conhece hoje o cambuci. Há várias árvores de cambuci no Jardim Botânico de São Paulo. A instituição prepara mudas dessa espécie para venda para quem tiver interesse.

As frutas de cambuci têm um perfume intenso, adocicado, mas de sabor ácido como o limão. Elas são muito apreciadas pelas pessoas que as conseguem. Do cambuci são feitos geléias, sorvetes, sucos, licores, maceração em bebidas alcoólicas como pinga. É apreciada também ao natural, mesmo sendo ácida. Nos tempos coloniais era feita uma infusão alcoólica em pinga das frutas do cambuci ou de uma mistura de cambuci e uvaia, a infusão ficando com aroma e paladar muito interessantes. Os pássaros são grandes apreciadores do cambuci e são responsáveis pela disseminação da espécie. As frutas não são encontradas no comércio. Fica aqui a pergunta – porque não trazer essa fruta de volta para o consumo popular? Além de termos mais uma boa fruta brasileira no comércio, a espécie não mais estaria em perigo de extinção. 

Gil Felippe é professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas. Autor de Frutas - sabor à primeira dentada, 2005, Editora Senac – São Paulo.

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