Pesquisa detecta substâncias que afetam o sistema hormonal de seres humanos e animais
Texto: CARLOS ORSI Fotos: Antonio Scarpinetti Edição de Imagens: Diana Melo
Mesmo atendendo aos requisitos do Ministério da Saúde, a qualidade da água distribuída a 40 milhões brasileiros, moradores de 20 capitais, ainda precisa melhorar muito, revela pesquisa realizada em mananciais e na água que sai das torneiras pelo Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas Avançadas (INCTAA), sediado do Instituto de Química (IQ) da Unicamp. A principal preocupação, de acordo com o pesquisador Wilson Jardim, são os chamados interferentes endócrinos, substâncias que afetam o sistema hormonal de seres humanos e animais.
De acordo com Jardim, hoje existem cerca de 800 substâncias do tipo que são consideradas “contaminantes emergentes” da água – isto é, que aparecem no líquido, mas não são controladas por leis ou regulamentos.
“A portaria [2914, do Ministério da Saúde, que normatiza a qualidade da água potável] é muito estática, e a nossa vida é dinâmica, nossa sociedade é dinâmica”, disse Jardim, que é pesquisador do IQ e membro do INCTAA, ao Jornal da Unicamp. “A cada ano, são mais de mil novos compostos registrados. Trinta anos atrás, as pessoas usavam três produtos de higiene quando acordavam, antes de sair de casa. Hoje são dez, em média”.
O pesquisador explica que muitas dessas substâncias acabam indo parar no esgoto, nos mananciais e – porque a legislação não diz nada sobre elas – são ignoradas nos procedimentos de limpeza da água aplicados antes que ela retorne ao consumo humano. E parte desse material é composta por interferentes endócrinos.
A preocupação com contaminantes do meio ambiente que afetam o equilíbrio do sistema hormonal dos seres vivos é internacional. No ano passado, dois órgãos da ONU, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) publicaram um relatório conjunto, O Estado da Ciência dos Produtos Químicos Interferentes Endócrinos, alertando para os possíveis riscos dessas substâncias.
“A saúde humana e animal depende da capacidade de reprodução e desenvolvimento normais, o que não é possível sem um sistema endócrino saudável”, diz o texto.
Mesmo reconhecendo que ainda não há evidência irrefutável de que esses contaminantes estejam afetando a saúde das pessoas, o relatório cita uma série de problemas – como o aumento no número de casos de certos tipos de câncer, ou a antecipação da idade da primeira menstruação das meninas, observada em vários países – que podem estar relacionados à presença desses interferentes no ambiente.
Jardim lembra que há uma série de estudos ligando a presença dessas substâncias na água a alterações no desenvolvimento de animais, como peixes e sapos. Ele cita especificamente um trabalho publicado em 2007 no periódico PNAS, em que a contaminação de um lago canadense com uma concentração de 5 ng/l (nanogramas, ou bilionésimos de grama, por litro) de um hormônio usado em pílulas anticoncepcionais levou a população de peixes ao colapso, depois que os machos passaram a exibir características femininas, impedindo a reprodução.
“Isso fez com que a União Europeia comece, hoje, a pensar em regulamentar o etnilestradiol [hormônio usado em anticoncepcionais] em 0,035 nanogramas por litro, nas águas”, disse Jardim. “Esses são valores que há 15, 20 anos, ninguém conseguia nem medir. Mas hoje se fala desses valores com sobriedade, e com muita propriedade”. O pesquisador disse ainda que há uma lacuna importante no conhecimento sobre os efeitos desses contaminantes na fauna latino-americana. “A América Latina hoje tem pouquíssimos dados sobre os efeitos adversos na biodiversidade. Dados de feminização de peixes, de desaparecimento de sapos, do impacto na biodiversidade”, declarou. “Não sei se é falta de dados ou de sistematização e de acesso à informação. E isso é muito importante. É um pé manco que temos hoje, nessa questão”.
No levantamento realizado pelo INCTAA, foram coletadas amostras de água de mananciais e da água já tratada que chega à população em 19 capitais de Estados brasileiros e no Distrito Federal. O nível de cafeína na água foi usado como indicador da presença de contaminantes que têm ação estrógena, isto é, um efeito semelhante ao do hormônio feminino.
“Há uma dificuldade química em achar, medir os compostos que têm atividade estrogênica”, disse Jardim. “Porque são vários hormônios, vários detergentes, pesticidas que têm essa atividade de confundir o nosso sistema hormonal”. O pesquisador também lembrou que essas substâncias podem interagir entre si, de modo que o efeito estrógeno seja uma propriedade da mistura. “A toxicologia clássica não lida bem com misturas”.
No entanto, experimentos em laboratório mostraram que a presença de cafeína na água coletada tem uma boa correlação com a atividade estrógena, tal como detectada em experimentos. “A cafeína presente na água é quase toda excretada pela atividade humana”, acrescentou ele. “É uma droga muito consumida. A gente consome muita cafeína, seja junto a medicamentos, refrigerantes, energéticos”. Assim, a concentração de cafeína também permite determinar quanto de esgoto foi lançado na água.
“Grande parte dos estrógenos em zonas urbanas, onde não se usam pesticidas, vem do esgoto”, disse Jardim. “E como eu meço esgoto? Quando você capta água e passa na estação de tratamento, se você faz uma desinfecção muito boa, a impressão digital do esgoto desaparece. Então fomos buscar uma impressão digital química, que não seja destruída na cloração, que possa ser parcialmente removida na estação de tratamento da água, mas que ainda permaneça em quantidades mensuráveis. E a cafeína se mostrou um excelente indicador”.
De acordo com ele, algumas estações de tratamento são capazes de remover até 99% da cafeína da água. “Então, mesmo quantidades muito pequenas podem indicar que o estresse do manancial por esgoto é alto”, disse.
No ranking das cidades brasileiras elaborado pelo INCTAA, a maior concentração de cafeína na água servida à população foi encontrada em Porto Alegre, com uma média de 2.257 ng/l, seguida por Campo Grande (900 ng/l) e Cuiabá (222 ng/l). A capital onde a água é menos contaminada é Fortaleza, com 2 ng/l. “As cidades litorâneas costumam jogar seu esgoto no mar”, lembrou Jardim. “Isso tende a manter a contaminação do manancial baixa, embora talvez não seja uma boa ideia nadar por ali”. Manaus também tem uma concentração baixa para os padrões brasileiros, de 8 ng/l. “É difícil saturar o Rio Negro com esgoto”, ponderou o pesquisador.
Já no ranking de mananciais, a região metropolitana de São Paulo aparece como a mais contaminada, com um nível médio de cafeína de 4.791 ng/l, sendo que a Represa Billings conta com 18,8 mil ng/l.
Jardim disse que, em mananciais da Europa, é difícil encontrar níveis de cafeína acima de 20 ng/l. “Em termos de contaminantes emergentes, no Brasil, bebemos água com qualidade comparável à da água não tratada lá de fora”, disse ele.
O pesquisador lembrou que a qualidade da água nos mananciais se deteriorou muito nas últimas décadas, mas o processo de tratamento não foi atualizado de modo correspondente. “Existe a tecnologia para dar o chamado polimento na água”, removendo boa parte dos contaminantes emergentes, disse ele. Mas ela não é usada no Brasil porque a lei e os regulamentos sanitários não exigem. “As tecnologias não são adotadas por inércia e pelo respaldo que as concessionárias têm na portaria do Ministério da Saúde”.
Em sua opinião, a visão de saneamento prevalente no Brasil ainda é a da contaminação com efeitos agudos e imediatos, como um surto de cólera, por exemplo. “Mas os interferentes endócrinos podem levar anos para mostrar seus efeitos, ou mesmo uma geração”.
Ele cita o caso do DES, um hormônio artificial receitado para mulheres grávidas entre as décadas de 40 e 70, e que depois, descobriu-se, causava problemas reprodutivos para as filhas dessas mulheres, incluindo esterilidade. “Como se descobriu isso? Só anos depois, quando as filhas chegavam à idade fértil”, disse o pesquisador.
Jardim afirmou que seria importante que as empresas de saneamento mantivessem, pelo menos, um controle do nível de cafeína em suas águas, para poder resgatar a história da contaminação, e que as pessoas passassem a pressionar por um tratamento mais completo da água que vão consumir. “O brasileiro se pergunta como ele pode purificar a água na sua casa”, disse. “Essa é a pergunta errada. A questão certa é: como posso pressionar a concessionária da minha cidade a me fornecer uma água melhor?”
Matéria no Jornal da Unicamp Nº 576, publicada pelo EcoDebate, 25/09/2013
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