“Nós, brasileiros, temos uma oportunidade rara nas mãos: diferentemente dos países desenvolvidos, ainda temos grandes sistemas rios-planícies de inundação para serem preservados, aposta o pesquisador.
Lagoas, brejos, canais e alagados são alguns dos exemplos que fazem parte do sistema das chamadas planícies de inundação. São áreas úmidas que inundam durante a cheia de um determinado curso d’água e são essenciais para a manutenção da vida natural, o que faz com que muito se fale sobre a conservação adequada destes ambientes. No entanto, para o biólogo Sidinei Magela Thomaz, a defesa destas áreas não depende apenas dos cientistas. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele afirma que a preservação carece “principalmente do convencimento dos políticos e do setor produtivo de que não há desenvolvimento sem preservação dos recursos naturais”.
Mas qual seria a importância da existência e da preservação de tais áreas? Para o biólogo, vários são os pontos relevantes a serem destacados. Primeiramente, esses ecossistemas “retêm sedimentos e poluentes e evitam cheias catastróficas”, além de serem responsáveis pela manutenção das populações de várias espécies de peixe. “Outra importante função relaciona-se com a conservação da biodiversidade, pois os sistemas rios-planícies de inundação abrigam várias espécies aquáticas e terrestres.” São patrimônios mundiais de vital importância para a humanidade e cuja conservação se faz urgente. Para o biólogo, “o conhecimento sobre o que fazer já existe, basta que o setor hidrelétrico implemente medidas baseadas no conhecimento científico”.
Sidinei Magela Thomaz possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de São Carlos, doutorado em Ciências Biológicas pela UFSCar e pós-doutorado pela Mississippi State University (USA). Atualmente é professor adjunto da Universidade Estadual de Maringá, no Programa de Pós-Graduação em Ecologia de Ecossistemas Aquáticos Continentais e no Programa de Pós-Graduação em Biologia Comparada. Atuou como presidente da Sociedade Brasileira de Limnologia (1999-2001), sobre o estudo das águas interiores, e como Representante da Área de Ecologia na CAPES (2003-2004). Foto: www.nupelia.uem.br
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A que o senhor se refere quando menciona “áreas úmidas de planícies de inundação”? Do que se trata exatamente?
Sidinei Magela Thomaz – Essas áreas, conhecidas como “sistemas rios-planícies de inundação”, são compostas pelas planícies associadas lateralmente a rios de médio a grande porte e que são inundadas em determinados períodos. Elas são caracterizadas por uma elevada diversidade de hábitats, como por exemplo, lagoas permanentes, lagoas temporárias, brejos, canais e locais de transição que permanecem secos em certos períodos do ano e alagados em outros.
IHU On-Line – Do ponto de vista ambiental, qual a importância dessas regiões, sobretudo tendo em conta a região do Rio Paraná, objeto de pesquisa do senhor? Que extensão tem essas áreas e como isso se relaciona com o aspecto climático?
Sidinei Magela Thomaz – Esses ecossistemas possuem várias funções ecológicas que se traduzem em serviços ambientais para o ser humano. Por exemplo, são responsáveis pela manutenção de populações de algumas espécies de peixes importantes tanto para a pesca esportiva como para a comercial (em especial as espécies migradoras). Além disso, retêm sedimentos e poluentes e ainda evitam cheias catastróficas em áreas localizadas a jusante (1). Esses são apenas alguns serviços ambientais desfrutados pelo ser humano, sem nenhum custo financeiro. Outra importante função relaciona-se com a conservação da biodiversidade, pois os sistemas rios-planícies de inundação abrigam várias espécies aquáticas e terrestres. No caso específico do rio Paraná, a planície de inundação situa-se no último trecho desse rio em território nacional onde ainda não foram construídas represas, representando assim, um remanescente essencial para a conservação da biodiversidade.
As planícies de inundação ocupam grandes áreas principalmente nos trópicos (por exemplo, oPantanal e a planície associada ao rio Amazonas), mas foram praticamente eliminadas nos países europeus e na América do Norte. No que concerne ao aspecto climático, espera-se que ocorram grandes alterações nessas áreas em decorrência das mudanças globais. Por exemplo, o ciclo hidrológico (2) que marca a sazonalidade dessas planícies alagáveis provavelmente vai se alterar ainda neste século em função das mudanças climáticas. Porém, não existem previsões precisas sobre as consequências dessas alterações.
IHU On-Line – De que ordem é a diversidade biológica dessas áreas alagadas? Qual a importância delas no equilíbrio do ecossistema?
Sidinei Magela Thomaz – Em primeiro lugar, é importante ressaltar que, independentemente da “quantidade” de espécies, os sistemas rios-planícies de inundação são fundamentais para algumas espécies que seriam prontamente eliminadas caso esses ecossistemas desaparecessem. Um exemplo, já mencionado, são os peixes migradores (dourados, pintados, curimbas). Mas em geral esses ecossistemas possuem uma elevada biodiversidade. A título de exemplo, somente a planície do alto rio Paraná concentra cerca de 50% das espécies de peixes conhecidos no Bioma Mata Atlântica e entre 20 e 50% da biodiversidade brasileira de alguns grupos de invertebrados aquáticos, sem contar as centenas de espécies de aves e dezenas de espécies de mamíferos já catalogadas na área. Além dessa importância para a biodiversidade, as funções ecológicas citadas acima contribuem para a manutenção da estabilidade dos ecossistemas.
IHU On-Line – O que são considerados “distúrbios naturais” nas áreas úmidas e, atualmente, quais são os principais riscos às áreas alagadas da bacia do rio Paraná (agropecuária, poluição, intervenção humana, etc.)?
Sidinei Magela Thomaz – Os principais distúrbios naturais nas áreas alagadas são as inundações, consideradas essenciais para a manutenção de sua estrutura e funcionamento. No caso específico do rio Paraná, esse distúrbio natural é imprescindível para a manutenção de várias espécies a ele adaptadas, mas isso tem sido alterado sobremaneira pela regulação da vazão do rio por reservatórios. As mudanças do regime natural hidrológico podem resultar em cheias de menor intensidade e, muitas vezes, fora de época, acarretando efeitos negativos para as espécies adaptadas ao ciclo natural das águas. Somado a isto, existem outros impactos também importantes que comprometem a planície do rio Paraná, entre os quais eu destacaria a introdução de espécies exóticas, o empobrecimento do rio em termos de nutrientes, que ficam retidos nos reservatórios, e a destruição de hábitats da planície para uso na agropecuária. Felizmente, esse último impacto ainda ocorre em pequena escala na planície do rio Paraná.
IHU On-Line – Como e em que medida os estudos realizados pelo Núcleo de Pesquisas em Limnologia, Ictiologia e Aquicultura – Nupélia, podem ajudar a recuperar a vegetação aquática frente a distúrbios naturais?
Sidinei Magela Thomaz – Os estudos realizados pelo nosso Núcleo já contribuíram para ações efetivas e outras potenciais, visando à conservação. Uma ação efetiva foi a escolha e delimitação da área do Parque Estadual do Ivinhema (MS) (3), a qual utilizou a base de dados do Núcleo e levou em consideração um local que continha remanescentes de vegetação terrestre ainda preservada e, principalmente, ecossistemas aquáticos adequados para a migração, a reprodução e o crescimento de várias espécies de peixes nativos.
Nossos dados também ajudam a identificar impactos humanos na região e a indicar medidas mitigadoras. Por exemplo, nossos colegas que trabalham com ecologia de peixes (destaco aqui o Dr. Angelo Agostinho (4) ) conhecem razoavelmente bem o período e a amplitude das cheias que são adequados para a manutenção dos estoques pesqueiros. Para isso, basta que as empresas produtoras de energia hidrelétrica liberem a água dos reservatórios na época correta e na quantidade adequada. Um regime hidrológico semelhante ao natural seria também fundamental para a conservação das plantas aquáticas, as quais você se referiu em sua pergunta. O conhecimento sobre o que fazer já existe, basta que o setor hidrelétrico implemente medidas baseadas no conhecimento científico.
IHU On-Line – Em que medida a construção de hidrelétricas reconfigurou as áreas úmidas de planícies de inundação? Que territórios foram extintos e que outros foram criados? O que isso significa em termos de ecossistema?
Sidinei Magela Thomaz – As hidrelétricas afetam as planícies de inundação de várias maneiras. Primeiramente, um reservatório pode alagar parte ou a integralidade de algumas áreas úmidas, resultando na eliminação local e imediata desses ecossistemas. Porém, os efeitos propagam-se para as zonas de jusante , e as planícies localizadas abaixo de uma barragem recebem água mais pobre em nutrientes e com turbidez menor, o que afeta diretamente as espécies aquáticas, antes adaptadas a outras condições ambientais.
Na planície do rio Paraná, por exemplo, constatamos que águas pobres em nutrientes reduzem o crescimento das plantas aquáticas, necessárias para várias espécies animais. Além disso, nessa planície, a redução da turbidez facilitou a disseminação do tucunaré, um peixe predador voraz não nativo, cujos efeitos sobre a fauna local podem ser catastróficos. Porém, talvez o pior impacto causado por um reservatório seja das alterações da dinâmica hidrológica, que mudam ecossistemas inteiros, tanto em seus aspetos físicos como biológicos.
IHU On-Line – Como o senhor avalia as pesquisas científicas voltadas para o tema das áreas úmidas? Que importância elas têm para o desenvolvimento de políticas públicas para garantir a manutenção de tais áreas?
Sidinei Magela Thomaz – Essas pesquisas evoluíram rapidamente na América do Sul nas últimas décadas, em especial no Brasil. Acumulamos muito conhecimento sobre a estrutura e o funcionamento de grandes sistemas, como o Paraná, Pantanal e Amazonas, e também sobre outros associados a rios de médio porte, como, por exemplo, alguns localizados no Rio Grande do Sul que foram estudados em profundidade pelo Dr. Leonardo Maltchik (5) , da Unisinos. O envolvimento de cientistas que estudam esses ecossistemas na tomada de decisões está aumentando e existem inúmeras possibilidades para melhorar seu manejo e conservação. Nesse sentido, torna-se fundamental que as decisões sejam tomadas com base no conhecimento científico. Mas ainda falta uma maior interação entre os vários segmentos da sociedade para melhorar o aproveitamento e a conservação dessas áreas. Certamente a integração de ecólogos, políticos, representantes do setor produtivo e de órgãos ambientais das diferentes esferas seria um avanço considerável para a conservação não somente das áreas úmidas, mas de qualquer outro ecossistema brasileiro. É pertinente lembrar que os países desenvolvidos tomam decisões que, em sua maioria, respeitam o conhecimento científico.
IHU On-Line – Que áreas do conhecimento integram os grupos de pesquisa das áreas úmidas? Como esse trabalho interdisciplinar é realizado? Por que uma abordagem mais ampla é importante à pesquisa?
Sidinei Magela Thomaz – As áreas do conhecimento que integram os grupos de pesquisa dependem dos objetivos do trabalho e da disponibilidade de recursos humanos. Porém, há vários grupos multidisciplinares, formados por biólogos, ecólogos, geógrafos, geólogos, hidrógrafos, químicos e cientistas sociais, dedicados ao estudo dessas áreas. O trabalho multidisciplinar demanda que os participantes de uma equipe tenham um conhecimento mínimo de cada uma das diferentes áreas.
Porém, muito mais do que isso, os pesquisadores devem ter espírito de equipe, devem saber ouvir mais do que falar e devem estar aptos e abertos para aprender novos paradigmas. Infelizmente, acredito que poucos cientistas possuem esse conjunto de características (me incluo nesse grupo com deficiências para realizar um trabalho multidisciplinar). Ainda a esse respeito, penso que a abordagem mais ampla e multidisciplinar é necessária especialmente na elaboração de planos de manejo visando à conservação dessas áreas, pois isto depende do conhecimento biológico, físico, mas também do meio social, que é indissociável do ambiente. Nesse sentido, acredito que a pesquisa científica não precisa envolver aspectos multidisciplinares, mas sua aplicação sim.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Sidinei Magela Thomaz – Nós, brasileiros, temos uma oportunidade rara nas mãos: diferentemente dos países desenvolvidos, ainda temos grandes sistemas rios-planícies de inundação para serem preservados. Eles constituem um legado que podemos deixar para as futuras gerações e, juntamente com nossa megadiversidade, deveriam ser motivo de orgulho e o foco de programas visando sua conservação. Porém, infelizmente, a conservação desses importantes ecossistemas e de sua biodiversidade não depende somente da vontade dos cientistas, mas, sobretudo, do convencimento dos políticos e do setor produtivo de que não há desenvolvimento sem preservação dos recursos naturais.
Notas:
1.- Jusante: rio abaixo pelo ponto de vista do observador; vazante para o mar. (Nota da IHU On-Line)
2.- Ciclo hidrológico ou Ciclo da água: troca contínua de água na hidrosfera entre a atmosfera, a água do solo, as águas superficiais, subterrâneas e das plantas. (Nota da IHU On-Line)
3.- Parque Estadual das Várzeas do Rio Ivinhema: criado por decreto em 1998, o parque tem mais de 73 mil hectares e está localizado nos municípios de Taquarussu, Jateí e Naviraí, no estado do Mato Grosso do Sul. (Nota da IHU On-Line)
4.- Angelo Antonio Agostinho: doutor em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos. Atualmente é professor titular da Universidade Estadual de Maringá e pesquisa especialmente ictiofauna, pesca, limnologia, manejo e conservação de recursos ictiofaunísticos em reservatório e áreas úmidas. (Nota da IHU On-Line)
5.- Leonardo Maltchik: doutor em Ecologia pela Universidad Autônoma de Madrid. Atualmente é professor titular da Unisinos. Desenvolve pesquisas sobre ecologia aquática, com ênfase na biodiversidade e conservação de áreas úmidas, banhados e wetlands do sul do Brasil. (Nota da IHU On-Line)
(EcoDebate, 03/12/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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