segunda-feira, 11 de março de 2013

Das ‘ideias arranjadas’ à realidade inquietante, artigo de Washington Novaes

[O Estado de S.Paulo] Diante da notícia de que, segundo o IBGE, a economia brasileira teve o pior desempenho desde 2009, com um crescimento de apenas 0,9%, o ministro Guido Mantega (da Fazenda) afirmou, categoricamente, que “a crise não bate na porta da família brasileira (…). Tivemos ótimo resultado de emprego. Os brasileiros estão adquirindo casa própria, automóveis. Para a população foi um ano de melhoria de condições de vida”.

Tudo depende dos ângulos pelos quais se queira ver as questões. Também a presidente da República havia dito algumas semanas antes (Folha de S.Paulo, 5/2) que até este mês de março “o governo terá retirado da pobreza extrema todas as pessoas que vivem nessa situação no País e que estejam cadastradas pelo governo”. E mais: “Tiramos, entre 2011 e 2012, mais de 19,5 milhões de pessoas da pobreza extrema” – ou seja, famílias com renda per capita mensal de até R$ 70. O Brasil, conforme os dados governamentais, tem 13,5 milhões de famílias que recebem a Bolsa-Família (R$ 70 mensais por pessoa), ou 50 milhões de pessoas que recebem R$ 23,2 bilhões por ano. É muito, embora represente menos de 20% do que o próprio governo paga por ano aos bancos de juros da dívida. E embora R$ 70 mensais por pessoa ainda estejam abaixo da “linha da pobreza” admitida pela Organização das Nações Unidas (ONU), que está em US$ 2 por dia (US$ 60 por mês ou R$ 120 mensais).

De qualquer forma, ainda temos 2,5 milhões de pessoas “fora de programas sociais” e em extrema pobreza (Folha de S.Paulo, 16/2) – o que corresponde a uma vez e meia a população de Montevidéu. E os 50 milhões de pessoas com renda mensal até R$ 70 são mais do que a população toda da Argentina, cinco vezes a de Portugal (10,6 milhões), mais que a da Espanha, quase tanto quanto a da Inglaterra. Na verdade, o Brasil ainda continua entre os países com maior desigualdade de renda no mundo (1% mais ricos da nossa população tem 17% de toda a renda). E teremos em duas décadas mais de 20 milhões de pessoas que se somarão à população de hoje. Mas também é certo que em uma década nossa taxa de mortalidade infantil baixou quase para a metade do que era. Já a taxa de analfabetismo até 15 anos de idade caiu 30%. O esforço total significa que o governo federal está gastando 50,4% de suas despesas, ou R$ 405,2 bilhões anuais (excluídas as da dívida), em programas, além do Bolsa-Família, como os de amparo ao trabalhador, previdência urbana e rural, seguro-desemprego, assistência, abono salarial, assistência a deficientes e idosos.

Mas não estamos sozinhos no barco das dificuldades. Diz a ONU que mais de 800 milhões de pessoas no mundo passam fome todos os dias e uns 40% da população mundial (2,8 bilhões de pessoas) vivem com renda abaixo da linha da pobreza. Quase metade dos habitantes do planeta não dispõe de saneamento básico, o que leva mais de 1 bilhão de pessoas a defecar ao ar livre todos os dias (mais de 600 milhões na Índia). Mas os pobres, embora sejam maioria, só consomem um terço dos alimentos produzidos, enquanto um terço é desperdiçado. Como vamos ter pelo menos mais 2 bilhões de pessoas, talvez 2,5 bilhões, até 2050, será preciso produzir mais comida. Como, se a agricultura já usa 70% da água disponível na Terra e teria de chegar a quase 90%, quando 1 bilhão de pessoas já não têm acesso a água de boa qualidade?

Não custa citar mais uma vez os números que o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) tem reiterado: os países industrializados, com menos de 20% da população mundial, consomem quase 80% dos recursos totais; as três pessoas mais ricas do mundo, juntas, têm tanto quanto o produto interno bruto (PIB) conjunto dos 48 países mais pobres, onde vivem 600 milhões de pessoas; as 257 pessoas mais ricas, com mais de US$ 1 bilhão cada, juntas têm mais que a renda anual de 40% da humanidade. E os 500 milhões de pessoas mais ricas (7,14% da população total) emitem 50% dos poluentes que causam mudanças climáticas. Um indiano consome 4 toneladas anuais de materiais, um canadense, 25 toneladas. Se se quiser chegar mais perto, o padrão médio de consumo de recursos dos paulistanos está 2,5 vezes acima da média global.

E assim vamos, aumentando as emissões de poluentes, elevando a temperatura do planeta, gerando cada vez mais “desastres naturais”. Como se vai fazer, se mesmo com tantos programas em toda parte não conseguimos reverter as tendências globais – ao contrário, enfrentamos cada vez mais dificuldades, com as crises econômico-financeiras na Europa e suas repercussões no mundo? “Nosso modelo econômico e social está esgotado”, tem repetido o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. E a crise não se resolverá em menos de cinco anos, afirma a chefe do governo alemão, Angela Merkel (já há economistas que preveem até “um século” para superar o drama).

Utópicos acham que só poderá haver soluções com uma reforma global que conduza à equidade entre países e, em cada um, entre as pessoas. Mas como se fará, se isso depende de decisões políticas que englobem todos os países, com problemas, visões e urgências políticas extremamente diferenciadas? Como reconfiguraremos o mundo, se a descrença na política é cada vez maior, principalmente por aqui? Quem tem a fórmula mágica? Como diz o personagem de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, “uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias… Tanta gente – dá susto de se saber – e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons…”.

É a equação que está diante de todos, hoje. Com as crianças à espera de respostas sobre um futuro inquietante. E quanto mais demorarem as respostas, mais difícil será.

* Washington Novaes é jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br.
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 11/03/2013
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